Fragmentos de Ausência


Debaixo da ponte óssea na Alameda dos Aflitos, um vento cortante me gela a medula, arde olhos e boca. Respirar dói – viver machuca.

Lentamente passo a passo no desequilíbrio pendular dos braços cruzados, o veludo falha e a lã esfria. Meu casaco é a alma morta dos homens que já fui.

Vagueia uma folha seca parda grossa e velha, em constante balé macabro sem direção. Apenas dança e me desafia, parando vez ou outra ao meu lado, como quem olha aos buracos dos meus sapatos na certeza de ter pena, e na ameaça vã de encontrar esperança, pois esta sabe que morreu.

Vejo uma goteira há uns dez, doze passos. Escorre gota a gota de uma fenda mal construída na parede cartilaginosa do encontro das hastes próxima à espinha central que sustenta a construção. Vejo também esforços, vejo ali, no rasgo, a vida começar a morrer. Não desvio, e umedeço o chapéu.

Chego então do outro lado. Um tanto apressado, um tanto feliz com o percurso. Um outro tanto, aquele que aguarda por aplausos e congratulações, deita exausto, e a minha quarta parte quer voltar. Minha pele dói, meus olhos ardem. Minha boca quer gritar, mas o coração está tranquilo.

Debaixo da ponte óssea, ali bem perto, na Alameda dos Aflitos, penso eu, que parou de ventar. Respirar doía, viver machucava...

Sigo rumando às veias de sangue viscoso.

A morte do palhaço


Que a mão da arte teça o casaco do velho louco
E que este encante a intangível plateia
Do universo dançante de astros e explosões
E que teu rosto volte a ser a bela criança
E tuas armas sejam novas e orgânicas
Como o velho nariz vermelho e grandes pés de ponta inchada
E boca borrada pelo sorriso que força
Na força de ser um velho tecido em tecido velho
Sem a artimanha do dilema que eis na questão
Ou na interpretação jocosa do eu que não mais atua
Na certeza do repente que improvisa em vida
Em projétil frágil que se ergue em cena
À decupar a própria matéria em moléculas de alegria
E não assustar o torpe transeunte que vislumbra pelo acaso
As piadas infames sem origem nem destino
E que volte a ser palhaço o velho louco
E seja sempre um louco o ser que volta
E respeitável seja com o público que anseia
Pelos urros de um prazer animal e desconexo
Pois entre os risos que coram o reles povo
Há dor, vida, morte, prazer e fuga
No movimento último que finda o espetáculo
Vai repousar tranquilo no camarim dentro do peito
E arrancar a maquiagem que esconde essências
Ouve-se então um último aplauso
E fecham-se as cortinas...