Minhas marcas da vida dele

Disse a um alguém que não me ouvia
Que não há ferida,
Que não há dor, nem cicatriz...

Disse tudo a um alguém, que não sentia

Amor, ódio... Tampouco a alegria
De estar, ou saudade, de sair
Em busca do sorriso que traiu

Adormeci como um poeta

A sonhar com o cheiro de sangue
E incendiar lembranças, ao acordar

E então reconheci,

Sustentado pelas colunas angustiantes do nada,
O edifício que a dúvida ergueu
Quando esculpiu em ti, olhos claros de demônio

E me fez chorar

Nas muitas tentativas em vão
De escapar daquele que é dono do meu medo!

Perco a batalha ao abandono,
Na miserável esperança de não mais vivê-lo...




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olhos de carbono

Enquanto madrugávamos no silêncio distante
Dos teus olhos de carbono
Uma lágrima minha Sangrou e separou em sais
O que era meu, teu, nosso e do mundo

E de rosto enxuto
Entreguei metáforas ao mal
Descansando as costas de papel
Na muralha de espinhos
Reservada aos vaidosos

E se nascer outra manhã
À fazer brilhar o que secou
E desferir o que a noite deixou rasgar
Quando o ouro opacou

Chamarei de odiosos

Os anjos da certeza
Que mudaram a sorte de lado
Com a espantosa leveza
A fim de opacar o que brilhou

Nos idos tempos outros

Enquanto madrugávamos no silêncio distante
Dos teus olhos de carbono

morrei-me

Dói. Mas é leve como um sopro.
Sutura na alma, endurece, gruda e refaz.
O corpo geme, lacrimeja, sofre e padece.
Cansa. Mata. Devagar.
Ausências aliviam.
Morte é o que se vai.
O presente dinamita.
Amar é conclusão, amar é técnica.
Viver é o acaso perdido.
É o forro do sótão.
É o substrato.
Rir é o pior remédio.
Feliz é o sacro não humano.
Dói. E não passa.
Reergue a falta em torres de aço.
 Enquanto à machadada crescemos.
 Pelo mesmo fio que tudo vê
 Em lâmina que tudo apaga.
 Me despeço e saúdo!
 Aqueles que tudo evitam.
 E gozam – profanos
 Na ilusão do futuro.

Cadela de Mineville



Perdi as esperanças num balcão de couro fétido
Bebi em memória daqueles que a mim brindaram
 Tombei lentamente pelas madrugas algozes 
Deitei com mulheres que nunca, jamais, amei 
De gole em gole sulfurei meu próprio esôfago 
Cantarolei as angústias de um passado distante 
E com a melhor roupa umedecida pelo pior perfume roubado
 Fiz promessas sinceras, fictícias, estapafúrdias 
Menti habilidades, prazeres, viagens e desejos 
Conheci o fundo do poço do pior dos infernos 
Sofri calado fingindo suspiros nas tardes ensolaradas
 Nunca admirei ver flor nascer ou ave planar 
E mesmo que minha vida tenha sido um blues 
E sem ter compreendido o valor real da alma 
Ao meu lado sempre tive os belos ladros famintos 
Carinhosos demônios urbanos perdidos 
Donos de suas ruas, cidades, lixeiras e sarjetas 
Maestros que orquestram a anarquia dos becos 
E trepam raivosos e sujos em qualquer lugar
 Amigos do homem, mas antes, criaturas do mundo
 De sentido aguçado e olhar profundo, sereno 
Sempre próximos à dor de quem os estima 
Justos, eternos e efêmeros, os melhores cidadãos 
Monstros alegres, vis, atentos e vorazes 
Até que uma cadela, certo dia, me latiu com ódio... 
Suspirei devagar, sentei num canto, e morri.
No quarto trago do meu cigarro...

pássaro vermelho

Aprendi com um pássaro vermelho,
Que pousou rápido e destemido,
Na janela, a ser eu o meu amigo
E fazer do outro meu espelho.

 Acordei de mim, desfiz os nós,
Sonhando velhos sonhos antigos,
Para que meu choro inimigo,
Chore a música na tenra voz

Que o alado e tímido
Amor, aquele pássaro vermelho
Ouviu. E bateu asas de albatroz.

Cresceu, partiu.
Aos todos idos,

E ao pôr do sol voou por nós.