COSMOLÓGIKA - parte II

Muitos foram os dias em que eu nasci. E muitos foram os dias em que eu deveria ter morrido. O dia é sempre um dia e a noite é sempre escura. E sempre mais escura quando próxima do outro dia. Nunca houve uma noite em que eu deveria ter morrido. Nunca houve uma noite em que eu deveria ter nascido. As auroras são as gêneses, o dia só o é por que ele nasce oriundo de uma morte noturna. A noite em que eu deveria ter um dia, é a gênese que me falta. É a dor que escreve esse texto. Não há carícias numa carta. Palavras são manchas. A folha em branco é a gênese. Manchamos um papel para matá-lo. Para torná-lo aquilo que somos. A folha deixa de ser folha quando escrevemos. A noite deixa de ser morte quando o dia precisa nascer. Mas não há como se apagar a dor de um papel rabiscado. A gênese da dor é o final da tarde, quando se acaba um segundo parágrafo e o sol ofuscante de uma folha em branco se põe, sem ao menos citar o amor.


As noites escuras são nossos “eus” perambulantes. São a nossa oposição. O dia em que eu deveria ser uma noite ainda não aconteceu, apesar de presente. A felicidade é ter um dia após o outro, sem a nebulosidade intervalar da escuridão que nos resseca e aprisiona. O repouso é a antemorte, é o coma intuitivo da fuga que toda alma carece, é a realidade nua e crua. Retornamos sempre à posição fetal e caótica no ventre do nada. Adormece um corpo, perde-se a maquinaria. Resta uma alma inconsciente que sonha e se desfaz nas artimanhas de seu hospedeiro. Há em todos nós um inimigo, que se diverte sem nosso consentimento.


Há falhas na concepção da vida. Um ser é dia é noite, assim como as horas nascem e morrem. Aquilo que chamamos de viver é um hiato entre o eterno nascer e morrer – recurso prático de um sistema medíocre que se apresenta com altivez e aguarda por aplausos doentes da criação errante que o hospeda. Não há dias nem noites quando se vive. Transcorremos de um lado pra outro com rapidez e ansiedade; frágeis urgências presas a um eixo gravitacional, ao passo que um mundo gira quase que parado, sem nascer nem morrer, pois não tem alma.